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Endividamento ou fome: a escolha que muitas mulheres precisam fazer no Brasil

19/07/2023

Artigo escrito por Waleska Miguel Batista

O endividamento pode, por um lado, ser uma consequência de escolhas financeiras, para que as pessoas preencham expectativas de conquista de sonhos, como o desenvolvimento empresarial e pessoal, o custeio de formação escolar, a aquisição de imóveis ou mesmo o investimento de produtos na empresa ou negócio. Por outro lado, há o endividamento pela impossibilidade de arcar com as contas mensais de serviços básicos como água, luz, telefone e alimentação, o que caracteriza um enfrentamento cotidiano de boa parte da nossa população.

O primeiro endividamento é uma dívida calculada e potencialmente benéfica, uma vez que é possível colher seus frutos a médio ou longo prazo. Todavia, o segundo endividamento acontece porque, muitas vezes, o rendimento recebido mensalmente é incapaz de suprir as necessidades mais básicas, que garantem a dignidade da pessoa humana. Neste grupo, encontram-se parte dos endividados brasileiros, e as mais atingidas são as mulheres, a população negra e pobre, pois estruturalmente estão com os piores salários.

Com a pandemia da Covid-19 houve aumento do desemprego, e este motivo representa 30% das razões do endividamento. As mulheres, especialmente as negras, já estavam na faixa com os menores rendimentos e em atividades informais. Nesse sentido, este grupo ficou alijado quanto ao acesso aos direitos básicos como educação, saúde e alimentação, pois são direitos que possuem custo, e as mulheres, tanto brancas como negras, têm mais dificuldade de custeá-los.

Conforme o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2021) o rendimento do trabalho das pessoas brancas foi, em média, 69% superior ao das pessoas pretas ou pardas. Inclusive, foi constatado que pretos e pardos receberam menos em todos os níveis educacionais, sendo que, no grupo das pessoas com nível superior, o diferencial alcançou 41%. Somente 14,6 % de pessoas em cargos gerenciais de mais alta renda eram pretas ou pardas, ante 84,4% brancas.

O IBGE também apontou que o rendimento médio domiciliar per capita das pessoas por cor ou raça da população em 2021 dividiu-se da seguinte maneira: na população branca era de R$ 1.866, da população preta foi de R$ 956 e da população parda de R$ 945. Isso implica dizer que o rendimento da população branca foi quase duas vezes maior do que da população negra como um todo (incluídos pretos e pardos).

É importante pensar, simultaneamente, na questão do endividamento e nos dados sobre a fome no Brasil. Pesquisa encomendada pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional, executada pelo Vox Populi e divulgada no final de junho de 2023, que integra o 2º Inquérito Nacional sobre a Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil (Vigisan), aponta que a fome atinge 22% das famílias chefiadas por mulheres negras, mas apenas 8% das famílias chefiadas por homens brancos.

Considerando os domicílios em que a(o) "chefe" da família tinha trabalho remunerado nos três meses anteriores à realização da entrevista, havia segurança alimentar em (1) 59,5% das famílias chefiadas por homens brancos; (2) 48,6%, por mulheres brancas; (3) 41,5%, por homens negros; e apenas (4) 32,1%, por mulheres negras. Para o grupo das mulheres negras, mesmo nos casos em que elas estavam de fato empregadas, quase 20% dos lares passaram fome. Isso impõe pensarmos, novamente, sobre a remuneração dessas mulheres: quanto menor o salário, pior a capacidade de evitar a insegurança alimentar grave.

Desse modo, as mulheres negras, destinadas à margem da sociedade, muitas vezes são, erroneamente, acusadas de não terem educação financeira, praticarem uma má gestão econômica, e algumas até são acusadas de ?não gostarem de pagar as contas?. Na verdade, acontece o contrário: frente a esse salário reduzido, para as famílias que de fato possuem remuneração fixa, é importante destacar que o endividamento acontece como última saída à manutenção da própria vida e dignidade.

Os salários das mulheres negras e dos homens negros são destinados, majoritariamente, para a aquisição de alimentos. Como a população negra sofre em todos os setores com a discriminação racial, em que pesem os dados sobre inadimplência aqui mencionados não terem evidenciado o recorte de endividamento por raça e cor, a percepção é que as mulheres negras devem ter um número expressivo de inadimplemento. Frisa-se que as mulheres negras são chefes de família, direcionam o dinheiro para alimentação, transporte e até roupas e cabelo, para evitar violências cotidianas, que podem culminar em ataques discriminatórios. Ou seja, a decisão econômica dessas mulheres é acertada tática de sobrevivência em uma sociedade desigual, conforme o artigo de minha autoria intitulado "Direcionamento do dinheiro das mulheres negras".

Dados do Serasa apontam que, em 2021, as pessoas de baixa renda com acesso ao cartão de crédito utilizaram esse saldo para compra de alimentos, ou seja, o saldo de crédito se torna de fato o complemento do "rendimento mensal". Assim, para muitas famílias, o salário é utilizado para algumas contas e o cartão de crédito para outras, como para custeio da alimentação.

Porém, como o salário não é suficiente para arcar com todas as despesas mensais, as famílias precisam fazer a opção do pagamento de uma percentagem mínima do cartão de crédito, no lugar da fatura completa, e ainda optar por pagar conta de aluguel, água ou luz. O resultado é uma dívida elevada junto às financeiras, inclusive porque os bancos em geral praticam taxas mais altas de juros, principalmente para a população com acesso precário ao crédito.

Além disso, cerca de 70% das pessoas entrevistadas precisaram optar por qual dívida pagar. Desse total, 76% das mulheres tiveram de fazer essa opção. Portanto, não se trata de mera vontade de não pagar determinada obrigação, mas da ausência de pagamento diante da insuficiência financeira. Não há opção de renegociação da dívida, principalmente quando o salário é baixo.

Os salários mais baixos; a necessidade de suprir os direitos básicos para garantir a dignidade ? sua e de sua família; a dificuldade de acesso ao crédito e o contexto estrutural, político e econômico da sociedade brasileira são componentes que, de um modo ou de outro, atingem uma situação temerária para as mulheres do Brasil. Dentro desse grupo, as mulheres negras, conforme os dados apresentados demonstram, são as que enfrentam as maiores dificuldades para se manterem fora do quadro de devedores do país, que só tende a crescer se a estrutura política e a econômica não forem alteradas. Este é o desafio. Educação financeira é extremamente importante, mas ela precisa estar aliada a um movimento em prol da igualdade em todas as relações sociais, especialmente quando se fala em garantir a sobrevivência.

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Waleska Miguel Batista

Advogada, professora da Faculdade Autônoma de Direito (Fadisp), consultora de relações governamentais do Instituto de Estudos Estratégicos de Tecnologia e Ciclo de Numerário (ITCN), doutora em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, mestra em Sustentabilidade e graduada em Direito pela PUC-Campinas, integrante do Grupo de Pesquisa Estado e Direito no Pensamento Social Brasileiro (CNPq) e advogada-orientadora do Núcleo de Ensino Clínico em Direitos Humanos da PUC-Campinas e conselheira do Instituto Luiz Gama

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